"... tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!"
Os versos acima são conhecidos do grande público desde que Arnaldo Antunes os declamou em meio aos acordes da música "Amor I Love You", de Marisa Monte, estrodondoso sucesso no ano 2000. Pouca gente sabe, no entanto, que as belas palavras foram extraídas de um romance do escritor português Eça de Queiroz, publicado em 1878. O Primo Basílio constitui uma análise da família burguesa urbana lisboeta no século XIX, mas é tão atual e contextualizado que sua temática pode ser aplicada a qualquer época ou local. Afinal, nada mais contemporâneo que a hipocrisia da sociedade.
A essência da história é a narrativa de um lar burguês aparentemente feliz e perfeito, mas com bases falsas e igualmente podres. Jorge, bem sucedido engenheiro, funcionário público. Luísa, moça romântica e sonhadora. Casados e felizes, falta apenas a dádiva de um filho para completar a alegria do lar do engenheiro. Mas a felicidade e a segurança de Luísa passam a ser ameaçadas quando Jorge tende a viajar a trabalho. Após a partida, Luísa fica enfadada sem ter o que fazer, no marasmo e em uma melancolia pela ausência do marido. Exatamente nesse meio-tempo, Basílio chega do exterior. Conquistador e "bon vivant", o primo não leva muito tempo para reconquistar o amor de Luísa, com a qual havia namorado antes de Jorge. A ardente paixão faz com que Luísa pratique o adultério. Os encontros entre os dois se sucede à troca de cartas de amor, uma das quais é interceptada por Juliana - a empregada amarga e revoltada de Luísa -, que começa a chantagear a patroa, exigindo-lhe que obedeça suas ordens para nãos er desmascarada.
As personagens de O Primo Basílio podem ser consideradas o protótipo da futilidade, da ociosidade daquela sociedade. A criação dessas personagens denuncia e acentua o compromisso do romance com o seu tempo: a obra deve funcionar como arma de combate social. A burguesia - principal consumidora dos romances naquela época - deveria se ver no romance e nele encontrar seus defeitos analisados objetivamente, para, assim, poder alterar seu comportamento.
Lisboa é o cenário da crítica de Eça de Queiroz. Assim também ocorreu em 1988, quase cem anos após a publicação da obra, na minissérie brasileira produzida pela Rede Globo, escrita por Gilberto Braga e Leonor Bassères, com fidelidade ao livro. Quase vinte anos depois, Daniel Filho, o mesmo diretor da obra televisiva, resolveu levar a história para o cinema, só que, desta vez, mudando o cenário e a época da trama, sem perder sua essência. Em vez de Lisboa, a São Paulo dos anos 50. Jorge continua sendo engenheiro, funcionário público, e viaja para construir Brasília, a nova capital do país, uma razão nobre para se ausentar. Luísa continua sendo a mulher casada massacrada pela tradição, pela sociedade machista, sufocada pelo desejo reprimido. E vem Basílio, o primo, um dândi, boêmio, típico também da época, da cidade. Adultério, hipocrisia, inveja, intrigas no ambiente familiar. Mais Nelson Rodrigues impossível.
Com Fábio Assunção (Basílio), Debora Falabella (Luísa), Reynaldo Gianechinni (Jorge) e Glória Pires (Juliana) no elenco, o filme Primo Basílio poderá ser visto a partir do dia 3 de agosto nos principais cinemas do país. A adaptação do roteiro, não por acaso, foi feita pelo escritor Euclydes Marinho, o mesmo que, juntamente com Daniel Filho, foi responsável pela adaptação dos contos de Nelson Rodrigues para a tevê no especial A vida como ela é. Vale a pena conferir mais essa demonstração do amor pelo buraco da fechadura...
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